

Apesar dos diversos métodos e técnicas de yogas-meditações, alinhamento de chakras, cerimônias do cacau e ativação de um ninho inteiro de kundalinis, os yogis continuam a viver em amnésia coletiva.
Mas porquê será?!
As mesmas estruturas que na história passada permitiram o roubo de terras, a eliminação cultural e a opressão econômica ainda existem, agora disfarçadas como “autoconhecimento” e “rituais de cura”.
A espiritualidade virou produto. O sagrado, mercadoria. O silêncio, um pacote vendido em 3X no cartão. A busca por transcendência se tornou performance e os momentos de conexão virou cenário para selfie. O que era para ser caminho de libertação se tornou trilha sonora de playlists de mantras lo-fi e ordem de consumo para corpos que podem pagar (principalmente aqueles que podem pagar caro).
O klesha (obstáculo) maior do yogi contemporâneo não é apenas ignorância, mas sim uma recusa deliberada e ilimitada em reconhecer como muitas de suas experiências espirituais moldam violentamente o seu comportamento no mundo.
A romantização descarada das tradições orientais dominando à nossa viralatisse caramelo brasileira exclui a experiência da nossa própria identidade. Escolas e cursos de formação de Yoga, lucram com o transplante do conhecimento de práticas mercantilizadas a altos preços pelos próprios sul-asiáticos.
E o que se vende como “tradição milenar” muitas vezes é uma versão pasteurizada, higienizada e despolitizada de saberes que foram arrancados de seus contextos originais. O que se ensina como “equilíbrio espiritual” é, na verdade, uma escolha política de manter o status quo nas mãos de quem detém o poder. A espiritualidade que não confronta estruturas de poder é apenas mais uma engrenagem do sistema.
Acesso liberado apenas aos privilegiados, pelo gênero, pela cor, pela classe social, pela região que habita, pelo formato do corpo que tem e pelo tipo de deux que acredita ou se desacredita.
A exclusão é sutil, mas constante. Está na linguagem usada nas aulas, nos corpos que aparecem nas propagandas, nos preços dos retiros, nos espaços onde essas práticas acontecem. Está na ausência de vozes e corpos dissidentes. Está na normatização do que é “espiritual” e do que é “elevado”.


Depois dizem que Yoga não é política e nem religião (rindo de nervoso).
Yoga quando capturada pelas sistematizações pode ser usada como instrumento de poder, organizando e deslocando pequenos coletivos, transformando um tipo de conhecimento local em verdade absoluta, em marca de roupa que chama “Lulu a lua”, em retiros espirituais que vão da serra carioca ao extremo sul baiano, passando pelo Nepal, Taj Mahal até as praias paradisíacas de Bali.
É cool, é massa, mas compreenda o que existe por trás de toda essa fantasia, aí então escolha fazer parte (ou não).
A espiritualidade que não se pergunta “quem está ficando de fora?” é uma espiritualidade incompleta. A prática que não se pergunta “quem está sendo silenciado?” é uma prática que colabora com a opressão. O yoga que não se pergunta “quem está lucrando com isso?” é um yoga que perdeu o rumo.
Para manejar o sofrimento pessoal é preciso expandir o olhar para tratar as mazelas de uma comunidade inteira e não apenas a visão do indivíduo. A consciência e o discernimento social não surgem milagrosamente ao se isolar no topo de uma montanha ou viajar ao paraíso cheio de good vibes, ter 5 aulas de yoga agendadas na semana e comer comida vegana.
É preciso descer da montanha. É preciso olhar para o chão que se pisa, para a terra que se ocupa, para os corpos que se ignoram. É preciso entender que o sofrimento individual está entrelaçado com o sofrimento coletivo, e que não há cura verdadeira sem justiça.
Entender a dor pessoal é entender o tipo de organização social na qual o seu corpo foi criado, é discernir o que é colônia de terra originária, colonizador de artesão criador. Se desorientar do sistema que promete liberdade mas na realidade te aliena. Se desmantelar das engrenagens que te fazem replicar todas as receitas de bolo das técnicas e métodos que você coloca em prática, com prudência se demorar… e logo em seguida se reorganizar.
É um processo de “desaprendizagem” e não um caminho para trás ou um retorno às origens. É um processo de descolonização do corpo, dos pensamentos e dos movimentos. É um convite a errar, a tropeçar, a se perder e ainda assim, continuar sendo, continuar existindo. Porque só quem se permite desorganizar pode, de fato, criar algo novo.
Para se desconstruir é preciso apurar o olhar, não apenas abrir os olhos e conseguir visualizar, mas sensibilizar:
- Desenvolver a voz sutil do criticar.
- Superar todas as vozes que um dia produziram no seu corpo o calar.
- Deseducar e desobedecer à rotina de produção desenfreada.
- Pintar com as nossas cores todas as histórias das diversas formas de yoga que conseguiram higienizar.
- Se encontrar com a arte e o prazer do ócio, dolce far niente.
Questionar é estar atento. Atentar não é apenas se conscientizar, é agir (ou des-agir). Yoga é a que questiona, a que se recusa a ser domesticada. É a que se mistura com a arte, com a política, com o corpo que dança e com a voz que grita. É a que se recusa a ser apenas técnica e se torna prática viva, pulsante, insurgente. A yoga que incomoda é a que liberta.
